"Nossa política, mãe da herança maldita". | Por Gaudêncio Torquato* | |
...Simulação e dissimulação emolduram o |
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A
expressão "herança maldita", de tão banalizada, virou carimbo para
marcar a feição de governos. Foi inicialmente usada por Lula em 2003
para dizer que recebera do ciclo tucano, comandado por Fernando Henrique
Cardoso, "um país quebrado". Nos últimos tempos, tem-se virado contra o
PT, colada aos escândalos de corrupção.
A síndrome da maldição de governos, sejam quais forem suas posições no arco ideológico, tem origem na política. Basta anotar a coletânea de mazelas que se extrai do pleito eleitoral, entre as quais se incluem as coligações proporcionais, a modelagem dos programas eleitorais, a infidelidade partidária, a proliferação de siglas, a figura do senador suplente e o próprio estatuto da reeleição. A "herança maldita" das gestões é filha da "herança política". Afinal, as representações do povo e dos Estados no Parlamento, ao lado dos governantes do Executivo, carregam para suas atividades o ônus de velhas práticas e instrumentos defasados da política. Veja-se a primeira contrafação: dos 513 deputados federais, apenas 35 (6,8%) receberam votos suficientes para se elegerem sozinhos, sem precisarem do adjutório de coligações ou do quociente eleitoral de legendas. Os restantes 478 ganharam o mandato pela soma dos sufrágios dados à legenda ou a A segunda mazela surfa na onda do Estado-espetáculo, cujos tentáculos se voltam para a visibilidade dos atores políticos. Arrumam-se palcos para o desfile de candidatos, cujos discursos são adornados de autoglorificação e floreios com aparente embalagem de programas e promessas. De um lado, os candidatos majoritários, com espaços mais largos, apresentam-se sob a batuta dos marqueteiros, brandindo feitos e desfraldando bandeiras. Esse é um momento cruel para a verdade. Simulação e dissimulação emolduram o jogo eleitoral. Cada qual se veste com o manto de herói, mocinho, salvador da pátria, benfeitor, extraordinária figura do bem; já o diabo, a destruição, a perversidade, a corrupção, a maldição são coisas guardadas no baú do adversário. Debates entre candidatos majoritários, que deveriam propiciar comparações entre propostas, são engessados por regras e, quando permitem o confronto direto, nivelam-se por baixo, fazendo fluir acusações recíprocas. Ao final, a carga negativa acaba ofuscando os poucos minutos de bom senso e racionalidade. Já na esfera de candidatos proporcionais, o desfile de caras, bocas e caretas é um espetáculo de nonsense. Na torrente de incongruências, a liberdade dos partidos de optar nos Estados por rumos diferentes dos seguidos por eles mesmos na esfera federal se afigura como estapafúrdia. É o que se vê. Conveniências pessoais, disputas tradicionais entre grupos e tradição familiar determinam as pedras no tabuleiro eleitoral dos Estados, fazendo os parceiros nacionais se transformarem em adversários locais. Não por acaso, a força dos partidos estiola-se ante tantas equações para a competição política. Ademais, a multiplicidade de siglas funciona como uma engrenagem defeituosa. Teremos, na próxima legislatura, 28 representadas na Câmara dos Deputados. A extravagância deve-se à derrubada da cláusula de barreira, em 2006, pelo Supremo Tribunal Federal. Acolhendo parecer do ministro Marco Aurélio de que a legislação provocaria o "massacre das minorias", o estatuto que dificultava a criação de partidos foi extinto, dando lugar a currais partidários para todos os gostos. Alguns desses estabelecimentos acabam propiciando parcerias esfumaçadas com a finalidade de melhorar o "pasto" dos rebanhos. Sem cláusula de barreira é possível enxergar, nos próximos anos, mais 20 siglas do "toma lá dá cá". E o que dizer de senadores sem um voto sequer? É um contrassenso ver chegar à Câmara Alta um suplente sem sufrágio no lugar do titular. Na composição ministerial tem sido comum o convite para senadores ocuparem cargos de ministro ou, ainda, de candidato a governos estaduais. É quando os suplentes ascendem ao posto. Eles são, em geral, figuras de porte empresarial/negocial e alguns ganham o assento em decorrência de sua disposição de bancar financeiramente a campanha do titular. Eis a charada. O mais lógico seria a ocupação do cargo pelo segundo candidato mais votado no Estado - uma decisão muito esperada da corte senatorial. Para fechar o circuito das mazelas deparamo-nos com o estatuto da reeleição. Em democracias consolidadas a reeleição pode ser um eixo de aperfeiçoamento democrático, no entendimento de que o mandato de quatro anos seria insuficiente para um partido no poder concluir sua obra. Em países de instituições políticas e sociais em processo de consolidação, como é o caso do nosso, a reeleição bafeja os governantes, visto que, sem se afastarem do posto, eles usufruem o simbolismo e a força inerentes ao cargo. Essa alavancagem contribui para entortar a régua da igualdade entre disputantes. Um mandato de cinco anos sem reeleição cairia melhor na moldura de nossa democracia, pois propiciaria a renovação de mandatários e a oxigenação das estruturas governativas. Essa é a farta "herança maldita" que o Brasil precisa banir. Gaudêncio Torquato - jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. |
Opinião
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