FÉ QUE PERDURA Romeiros
no monumento em Juazeiro do Norte: devoção ao “padim” (Crédito: Divulgação)
Celso Masson
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Para o povo, ele sempre foi
santo, o padrinho dos pobres. Para a Igreja, a figura de Padre Cícero
Romão Batista (1844-1934) oscilou em um curioso movimento pendular.
No início, seu trabalho de evangelização popular mereceu total
reverência; depois, ele foi atacado como um farsante que deveria ser
impedido de celebrar missas e até excomungado. Passados mais de 80 anos
desde a morte do religioso que se tornou político, a
Santa Sé, em Roma, propõe uma reconciliação com o padre cuja devoção
popular ainda hoje atrai romarias para Juazeiro do Norte, no Ceará.
Compreender quem foi de fato esse homem, a dimensão de sua obra, as
perseguições que sofreu e, principalmente, o lugar
que ele merece na história e na Igreja, se tornou um chamado para a
irmã Annette Dumoulin, religiosa, psicóloga e pesquisadora nascida na
Bélgica que há mais de 40 anos se dedica ao legado do protetor dos
despossuídos e aos romeiros de Juazeiro. Em “Padre
Cícero – Santo do Povo, Santo da Igreja” (Paulinas), ela apresenta um
estudo inédito e esclarecedor, baseado em documentos pouco conhecidos
que permitem um novo entendimento da obra do injustiçado “padim Ciço”.
Sangue na hóstia
Nascido no Vale do Cariri,
região considera- da um oásis em contraste com o árido sertão cearense,
Cícero Romão Batista ficou órfão de pai aos 18 anos e precisou
de favores do padrinho de Crisma para poder estudar no seminário da
Prainha, em Fortaleza, onde foi ordenado sacerdote em 1870. Em Juazeiro,
o jovem Padre Cícero passou a celebrar a Eucaristia aos domingos, na
capela de Nossa Senhora das Dores. Foi lá que,
em 1º de março de 1889, durante a confissão da beata Maria de Araújo, a
hóstia verteu sangue. Seria um “milagre eucarístico”? No entender de
Padre Cícero e de quem presenciou o fenômeno, sem dúvida. A sentença da
Igreja, porém, foi outra: “Os pretensos milagres
e outros fatos que se dizem de Maria de Araújo são falsos e
manifestamente supersticiosos (…) e devem ser por todos reprovados e
condenados”. Até os panos manchados de sangue, que haviam sido guardados
como relíquias, tiveram de ser recolhidos e queimados
por ordem do Santo Ofício.
Os desdobramentos desse fato
dividiram o povo e a Igreja. De um lado, romarias passaram a ser cada
vez mais comuns a Juazeiro. De Roma, contudo, partiu o decreto
de excomunhão de Padre Cícero. O religioso seguiu sua vocação pastoral e
em defesa dos pobres dentro e fora do sacerdócio. Entrou para a
política e foi o primeiro prefeito de Juazeiro, quando o município se
emancipou. Embora preserve a aura de santo no imaginário
popular, a Igreja o manteve bem longe dessa condição por mais de 80
anos.
Apenas em 2001 uma comissão
de estudos teve acesso aos arquivos relacionados aos mistérios de
Juazeiro. Depois de cinco anos de pesquisa, o Vaticano recebeu os
documentos compilados pela comissão, acompanhados de uma petição
assinada por 254 bispos favoráveis à reabilitação de Padre Cícero. Ela
foi finalmente concedida pelo Papa Francisco em 2015, para quem “O afeto
popular que cerca a figura do Padre Cícero pode
constituir um alicerce forte para a solidificação da fé católica no
ânimo do povo nordestino”. Seja ou não canonizado pela Igreja, o Padre
Cícero encontra-se agora legitimado pelo Papa Francisco.
O calvário de Padre
Cícero
1889 – Durante
a comunhão da beata Maria de Araújo, na Igreja de Nossa Senhora das
Dores de Juazeiro do Norte (CE), a hóstia verte sangue. O suposto
milagre começa a atrair romeiros
1894 – A
Santa Sé, em Roma, considera que houve fraude e reprova os fatos em
Juazeiro como “gravíssima e detestável irreverência e ímpio abuso à
Santíssima Eucaristia”
1897 – Padre
Cícero recebe a portaria de excomunhão caso não se retire de Juazeiro
1898 – Depois
de apresentar sua defesa em Roma, Padre Cícero recebe uma nova
sentença: é absolvido das censuras, mas fica proibido de falar ou
escrever sobre o “milagre da hóstia”
1922 – Pedido
de reabilitação de Padre Cícero é negado pelo Papa Leão XIII
2001 – Uma
comissão é criada para estudar os arquivos relativos aos fatos de Juazeiro
2006– O
resultado da análise é entregue ao Santo Ofício com uma petição assinada por 254 bispos para a reabilitação de Padre Cícero
2015 – O
Secretário de Estado do Vaticano assina a carta de “reconciliação histórica da Igreja com o Padre Cícero”
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