Por favor, não matem Chico Buarque
Andei
uns dias a ignorar o mundo. Ontem fui procurar, a golpes de polegar no
ecrã pequenino do meu telemóvel, motivos para comentar as notícias que
este tresloucado planeta nos oferece.
Há
nazis na América? De que estavam à espera? O terrorismo do Daesh e
apaniguados, mesmo desarmado, não desiste da guerra? De que estavam à
espera? Um outro tipo de terrorismo, o dos incêndios em Portugal, também
mata e também não desarma? De que estavam à espera?...
Marcelo
Rebelo de Sousa está em todo o lado? Sim. António Costa convida o PSD a
apoiá-lo no lançamento de novas obras públicas? Pois. O PSD responde
que Costa parece Sócrates? Óbvio. Marques Mendes, afinal, não adivinha o
futuro? Certo. Donald Trump pensa enviar mais tropas para o
Afeganistão? Claro. E há um eclipse na América?... Mas onde está a
surpresa, a verdadeira novidade disto tudo?... Chico Buarque está a ser
acusado de machismo? Ó diabo, aguenta aí!...
A
notícia diz que uma estrofe dos versos de Tua Cantiga, lançada há dias,
provocou aquela acusação: "Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu
capricho exigir/ Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir."
Pois uma enorme multidão, nos jornais brasileiros, nas redes sociais,
insultou e insulta o compositor por ser um gajo capaz de largar a
família por causa de uma amante; por ter uma noção de romantismo datada,
própria dos anos 70 do século passado; por insultar as mulheres
abandonadas; por menorizar o papel da mulher na sociedade e por enésimas
outras maldades cometidas a todo o género feminino, imensas enormidades
suspeitadas em apenas quatro versos curtinhos.
Prestigiados
intelectuais e jornalistas populares trocam argumentos a favor e contra
o autor de Mulheres de Atenas, discutem sociologia, psicologia, sexo,
família, adultério e amor; recursos estilísticos, metalinguagem e
licença poética; ritmos, harmonias e dissonâncias. Misturam, pelo meio, o
combate político por o artista ser, alegadamente, esquerdista, petista,
comunista e sei lá que outros istas. Ah, e as mulheres do século XXI,
dizem, não querem homens loucos de paixão... Caramba!
O
mais irónico é que na vanguarda deste processo contra o uso
politicamente incorreto da dor de corno estão muitas notáveis cabeças da
crítica aos excessos do politicamente correto: estes arautos da
liberdade individual contra normas de linguagem que procuram deter a
discriminação racial e sexual (normalmente defendidas por pessoas
alinhadas ideologicamente à esquerda) afinal também tentam impor um
código bem rigoroso sobre o que um artista deve ou não deve trovar - e a
favor da moral tradicional e da elevação dos costumes, tal como nos
anos 50 do século passado. Que monumental hipocrisia!
Perplexo
com o que leio no telemóvel, recordo o Chico Buarque que desde o início
da minha adolescência (sim, nos anos 70 do século passado...) me
ensinou tanto do que sei sobre sexo, amor, romantismo, solidão, prazer,
feminismo, machismo, hedonismo, solidariedade, opressão, liberdade,
tolerância, justiça, desonestidade, globalização, bairrismo, pobreza,
trabalho, riqueza, capital. E, também, métricas bizarras, rimas
surpreendentes e acordes dissonantes para violão. É obra.
Critiquem
lá o homem como quiserem - afinal, Chico Buarque lutou muito para que
os brasileiros o pudessem fazer - mas, por favor, não o liquidem de vez.
O mundo, nos últimos tempos, começou a ficar mais louco, mais perigoso,
menos livre, mais injusto, mais estúpido, mas um mundo sem Chico
Buarque deixará, simplesmente, de ter esperança. Isso, sim, seria fatal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário